Saturday, July 22, 2006

Excerto de um romance 2

II CAPITULO

O comissário da polícia, e um lugar chamado porta do céu.


Aquelas lembranças eram naquele lugar, como o oiro, que se empresta ao sol para a sua resplandecente grinalda de vaidade.

Os habitantes de Missavene sempre souberam que quando se conta a vida há que conta-la ao inverso das palavras, para que ela siga os passos do entendimento.





O Comissário adjunto da policia, Francisco Pleno, sentado em sua secretaria, mirrava o pátio pela janela, rendendo-se ao sedutor cenário. Torcia os bigodes, em gestos contínuos, sempre controlando as horas, num relógio de pêndulo pendurado à parede. Por vezes, balouçava o corpo magro, consequente do seu antigo vicio de fumar. “Há que se fumar as tristezas pelo seu pé, para se espantar as desgraças.” Eram estas às palavras que invocava sempre que o remorso lhe espetava mais forte a consciência.
Seus olhos, por vezes faiscavam, quando o céu tingido de azul se dissolvia no breve voo das aves. Agradava-lhe vê-las voando tão alto, transmitiam-lhe uma sensação indescritível de liberdade. Como se ele também ganhasse asas e se aventurasse pela infinitude do mundo e, mesmo que por tão breves instantes, alcançava uma outra dimensão, um outro aprumo. Ali tão alto, repousando nas nuvens, ele imaginava por vezes, que estava o Deus dos homens, contemplando a sua criação, todo infeliz, desgostoso, por tão miserável vida que levavam. Jamais fora um Homem religioso, para ele, Deus existia em cada Homem. Diferentemente do que todos diziam sobre a criação, para ele, Deus é que era a criação, e por sinal, a mais fantástica, renovando-se eternamente na fé dos Homens.
O relógio contava os minutos vagarosamente, em pancadas infernais, como se gostassem do atraso as horas. Isso começa a irritá-lo, pois não havia nada que ele pudesse fazer ali, senão, contemplar a inutilidade que nele se alojara, de tralhas e tudo. Por outro lado, até era melhor, pois sabia que ao regressar encontraria, uma cama vazia, e a saudade da sua mulher que ficara do outro lado do Mar. Sem falar, da Velha Cacilda que tomava conta da pensão onde ele estava alojado. A senhora era tão assustadora, que por vezes inspirava os seus mais medonhos pesadelos. Era como as bruxas das fábulas de sua infância. Lembrava-se disso com certa graça, porque até simpatiza com a velha. Agrada-lhe aquele sorriso carcomido pelo tempo, violentando alegrias de tempos idos, tempos de uma juventude longícua. Já fazia um bom tempo que estava hospedado naquela pensão, que tanto espanto o causara a quando da sua chegada. A pensão tinha um nome incomum: porta do céu. Mas, não era, o nome o que mais espanto lhe causara, mas sim, a falta de tecto. Quando chegou naquelas bandas inqueriu a velha sobre o fenómeno:
— Este tecto está furado, já havia reparado? – disse Pleno perplexo.
A velha olhou-o com um rosto inocente, e certamente entendeu tão ingénuo questionamento, ele não era dali. O seu povo, era muito diferente, quando queriam estar perto de Deus, iam aos templos, no entanto mantinham suas casas fechadas. A velha ajeitou a capulana mais ao pé do peito, procurando dar outro vigor as suas palavras, e disse:
— É assim que gostava meu marido. Ele dizia que, o tecto de uma casa é a porta escancarada para o céu, cobrir uma casa é cobrir o nosso coração para Deus. Há que se deixar o tecto aberto, pois o céu é também nossa casa.
Pleno franziu a testa, era o espanto, crescendo mais que a sua incredulidade.
— Esta casa é a mais importante de Missavene, sem ela não existe, o dia. É por este tecto que se entorna a claridade para os céus. – disse a velha Cacilda convicta de suas palavras.
— E como é que fazem quando chove? – inqueriu Pleno a Velha.
A velha soltou um sorriso tímido, e disse:
— Meu filho, a chuva é uma bênção, é Deus que nos banha com as suas próprias mãos. Achas que alguém pode negar isso?
O visitante ficou emudecido, passando algum tempo, ele começou a entender um pouco mais sobre as crenças locais, que de locais nada tinham, eram mais pessoais. Até era bom, dormir ao lado das estrelas, coberto pela noite. Avizinhado com as estrelas cadentes.
Depois de tanto meditar, decidiu que seria melhor se ficasse por ali, temia regressar à aquele lugar que só o atirava a sua solidão. A sala está vazia, silenciosa, somente por vezes ouvia-se alguém passando do lado de fora, arrastando-se em forçosos passos. Desde a sua chegada por aquelas bandas, encantava-se sempre que ouvia a Rosa peixeira voltando toda carregada de nada, simulando tempos de outrora, quando o mar era mais generoso. E ele gritava em voz alta:
— O que trazes tão carregada Rosa peixeira...? – e ela com aquele sorriso arrebatador, soltava-se em melodiosa voz, assim como se roubasse a harmónica sinfonia dos corais, e respondia:
— ...Mulungo, Rosa não pode responder, tem que correr para vender mercadoria na cidade. – e se ia, recolhendo o olhar, se esgueirando em ritmado gingado. A capulana, transparecendo alguns contornos enlouquecia Pleno, que montava plantão na sua janela todo santo dia, baboso de ansiedade. Mas desde que se fora Rosa peixeira, o silencio ficara mais dorido, e por vezes ele ouvia a voz a atravessar-lhe a recordação, dizendo:
- ...Mulungo, Rosa não poder responder, tem que correr para vender mercadoria na cidade. – E depois se esvaíam, quedavam lentamente, arrastando consigo os seus estilhaços que culminavam enferrujados na recordação. Como se Rosa peixeira, tão distante, tivesse encardido o esplendor dos seus dias. Aquelas lembranças eram naquele lugar, como o oiro, que se empresta ao sol para a sua resplandecente grinalda de vaidade.
Ligou o rádio, e impacientemente trocou os canais procurando algo que o agradasse, até que se decidiu pelas noticias locais. Naquele sitio era tão difícil haver algo de novo, que tudo que se contava, ou estava caducado, ou era das outras partes do mundo. Lá onde a vida corre com menos vagar. Ouviu o locutor falando: As mortes aumentam por causa da epidemia... — E no mesmo instante desligou o rádio, já podia prever o assunto penoso de que se tratava. Ele não era africano, mas já conhecia o conteúdo das noticias feitas para estes: Aumenta a pobreza, aumenta o desemprego, milhares de famílias desalojadas, milhares de órfãos vitimados pelo Sida. E seguindo esse sentido continuavam os tópicos. No entanto, alegrou-se por não estar distante da realidade. Por sorte, conseguiu sintonizar a frequência do canal português, e para ele aquilo foi tudo. Tocava-se musicas da sua terra, musicas cheias de distâncias. Ele as sentia como um




Pleno sabia, que algo de errado estava acontecendo, mas eram coisas muito além do entendimento humano. E isso ficava para além da sua jurisdição. Temia meter a mão por sítios, onde pudesse se queimar, ao mesmo tempo a função dele era repor a legalidade e trazer um pouco mais de conforto à aquelas famílias. Cansado daquela história, tirou da gaveta a sua habitual garrafa de aguardente da terra, de fabrico nacional. Sem nenhuma adulteração. Puro mesmo. Dizia por vezes, rindo-se de si mesmo, que aquele era o elixir da longa vida. Pois com aquele liquido, podia-se ressuscitar até o mais teimoso defunto. Pleno estava com uma história, que mais parecia uma corda sem começo. Não havia nem testemunhas, e nem provas de crime. Sabia-se somente que as pessoas dormiam, num ir sem volta. A quem se pode atribuir a culpa de tal sucedências? Como é que ele justificaria isso aos seus superiores? Mais fácil seria se alegasse loucura.

1 comment:

MAZIVE said...

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